quinta-feira, 25 de junho de 2015

Liber Leviticus

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‘João Almiro: o herói português’ - Imagem da Associação Nacional das Farmácias




'Um crime é um pecado que consiste em cometer (por feito ou por palavra) um ato que a lei proíbe, ou em omitir um ato que ela ordena. Assim, todo crime é um pecado, mas nem todo pecado é um crime. A intenção de roubar ou matar é um pecado, mesmo que nunca se manifeste através de palavras ou atos, porque Deus, que vê os pensamentos dos homens, pode culpá-los por eles. Mas antes de aparecer alguma coisa feita ou dita, onde um juiz humano possa descobrir a intenção, não pode falar-se em crime. Distinção esta já feita pelos gregos, nas palavras hamártema, énklema e aitía: das quais a primeira, que se traduz por pecado, significava qualquer espécie de violação da lei, e as duas últimas, que se traduzem por crime, significavam apenas o pecado do qual um homem pode acusar outro. Não há lugar para humana acusação de intenções que nunca se tornam visíveis em ações exteriores. De maneira semelhante, os latinos, com a palavra peccatum (pecado) designavam toda espécie de desvio em relação à lei, e com a palavra crimen (derivada de terno, que significava perceber) designavam apenas os pecados que podem ser apresentados perante um juiz, e portanto não são simples intenções.

Destas relações entre o pecado e a lei, e entre o crime e a lei civil, pode inferir-se, em primeiro lugar, que onde acaba a lei acaba também o pecado. Mas dado que a lei de natureza é eterna, a violação dos pactos, a arrogância e todos os atos contrários a qualquer virtude moral nunca podem deixar de ser pecados. Em segundo lugar, que onde acaba a lei civil acaba também o crime, pois na ausência de qualquer lei que não seja a lei de natureza deixa de haver lugar para acusação, sendo cada homem seu próprio juiz, acusado apenas por sua própria consciência e desculpado pela retidão de suas próprias intenções. Portanto, se há reta intenção o ato não é pecado, e no caso contrário o ato é pecado mas não é crime. Em terceiro lugar, que onde não há mais poder soberano também não há mais crime, pois onde não há tal poder não é possível conseguir a proteção da lei, portanto cada um pode proteger-se com seu próprio poder. Porque no momento da instituição do poder soberano não pode supor-se que ninguém renuncie ao direito de preservar seu próprio corpo, para cuja segurança foi estabelecida a soberania. Mas isto deve aplicar-se apenas aos que não contribuíram pessoalmente para a derrubada do poder que os protegia, porque isto foi um crime desde o início.

A fonte de todo crime é algum defeito de entendimento, ou algum erro de raciocínio, ou alguma brusca força das paixões. O defeito de entendimento é ignorância, e o de raciocínio é opinião errónea. Além disso, a ignorância pode ser de três espécies: da lei, dó soberano e da pena. A ignorância da lei de natureza não pode ser desculpa para ninguém, pois deve supor-se que todo homem chegado ao uso da razão sabe que não deve fazer aos outros o que jamais faria a si mesmo.'



Fonte:

HOBBES, Thomas de Malmesbury, Leviatã. Os Pensadores. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1997.