quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Contrato Social

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"O nascimento do poder político, que parece estar em relação com as últimas grandes revoluções da técnica, como a fundição do ferro, no limiar de um período que já não conhecerá perturbações em profundidade até à aparição da indústria, é também o momento que começa a dissolver os laços da consanguinidade. Desde então, a sucessão das gerações sai da esfera do puro cíclico natural para se tornar acontecimento orientado, sucessão de poderes. O tempo irreversível é o tempo daquele que reina; e as dinastias são a sua primeira medida (...)

A crónica é a expressão do tempo irreversível do poder, e também o instrumento que mantém a progressão voluntarista deste tempo a partir do seu traçado anterior, porque esta orientação do tempo deve desmoronar-se com a força de cada poder particular; voltando a cair no esquecimento indiferente do único tempo cíclico conhecido pelas massas camponesas que, na derrocada dos impérios e das suas cronologias, nunca mudam. Os possuidores da história puseram no tempo um sentido: uma direcção que é também uma significação. Mas esta história desenvolve-se e sucumbe à parte; ela deixa imutável a sociedade profunda, porque ela é justamente o que permanece separado da realidade comum. É no que a história dos impérios do Oriente se reduz para nós à história das religiões: estas cronologias caídas em ruínas não deixaram mais do que a história aparentemente autónoma das ilusões que as envolviam. Os Senhores que detêm a propriedade privada da história, sob a protecção do mito, detêm-na eles próprios, antes do mais, sob o modo da ilusão: na China e no Egipto, eles tiveram durante muito tempo o monopólio da imortalidade da alma; como as suas primeiras dinastias reconhecidas são a reorganização imaginária do passado. Mas esta posse ilusória dos Senhores é também toda a posse possível, nesse momento, de uma história comum e da sua própria história (...)

O raciocínio sobre a história é inseparavelmente raciocínio sobre o poder. A Grécia foi esse momento em que o poder e a sua mudança se discutem e se compreendem, a democracia dos Senhores da sociedade. Lá, era o inverso das condições conhecidas pelo Estado despótico, onde o poder nunca ajusta as suas contas senão consigo próprio, na inacessível obscuridade do seu ponto mais concentrado: pela revolução de palácio, que o êxito ou o revés põe igualmente fora de discussão. Porém, o poder partilhado das comunidades gregas não existia senão no dispêndio de uma vida social de que a produção continuava separada e estática na classe servil. Só aqueles que não trabalham, vivem. Na divisão das comunidades gregas e na luta pela exploração das cidades estrangeiras, estava exteriorizado o princípio da separação que fundava interiormente cada uma delas. A Grécia, que tinha sonhado a história universal, não conseguiu unir-se face à invasão; nem sequer a unificar os calendários das suas cidades independentes. Na Grécia, o tempo histórico tornou-se consciente, mas não ainda consciente de si mesmo."



Guy Debord in Sociedade do Espectáculo