quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Ketman

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Fotografia de Joana Rodrigues da Silva



A interpretação sociológica mais simples do indivíduo e do seu eu é que ele é, para si mesmo, aquilo que [o] seu lugar numa organização o define que seja. Quando posta em xeque, um sociólogo modifica esse modelo, admitindo certas complexidades: o eu pode ainda não estar formado ou pode apresentar lealdades conflituosas. 

Talvez seja necessário tornar o conceito ainda mais complexo, ao elevar tais restrições a um lugar central, inicialmente definindo o indivíduo, para os objetivos sociológicos, como uma entidade capaz de assumir posições, como algo que se coloca entre a identificação com uma organização e a oposição a ela, e que, diante da menor pressão, está pronto a reconquistar seu equilíbrio ao desviar sua participação para qualquer um dos lados. Portanto, o eu pode surgir contra alguma coisa. Isso foi bem avaliado pelos estudiosos do totalitarismo:

Em resumo, Ketman significa realização do eu contra alguma coisa. Quem pratica o Ketman sofre por causa dos obstáculos que enfrenta; mas se tais obstáculos fossem repentinamente afastados, ficaria num vazio que poderá ser muito mais doloroso. A revolta interna é as vezes essencial para a saúde espiritual, e pode criar uma forma especial de felicidade. O que pode ser dito abertamente é, muitas vezes, muito menos interessante do que a magia emocional da defesa do santuário pessoal.

Sustentei a mesma tese com relação às instituições totais, no entanto, será que isso não é verdade também no caso da sociedade livre?

Sem algo a que pertençamos, não ternos um eu estável: apesar disso, o compromisso e a ligação totais com qualquer unidade social supõem uma espécie de ausência do eu.

[O] nosso sentimento de ser uma pessoa pode decorrer do fato de estarmos colocados numa unidade social maior; [o] nosso sentimento de ter um eu pode surgir através das pequenas formas de resistência a essa atração. [O] nosso status apoia-se nas construções sólidas do mundo, enquanto [o] nosso sentimento de identidade pessoal reside, frequentemente, nas suas fendas.



Fonte:

GOFFMAN, Erving. Manicómios, Prisões e Conventos. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.