quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

A arte de punir

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'Fortaleza de Peniche', Fotografia de Joana Rodrigues da Silva




'A arte de punir deve portanto repousar sobre toda uma tecnologia da representação.

A empresa só pode ser bem-sucedida se estiver inscrita numa mecânica natural.

Semelhante à gravitação dos corpos, uma força secreta nos empurra sempre para nosso bem-estar. Esse impulso só é afetado pelos obstáculos que as leis lhe opõem.
Todas as várias ações do homem são efeitos dessa tendência interior.

Encontrar para um crime o castigo que convém é encontrar a desvantagem cuja ideia seja tal que torne definitivamente sem atração a ideia de um delito. É uma arte das energias que se combatem, arte das imagens que se associam, fabricação de ligações estáveis que desafiem o tempo. Importa constituir pares de representação de valores opostos, instaurar diferenças quantitativas entre as forças em questão, estabelecer um jogo de sinais-obstáculos que possam submeter o movimento das forças a uma relação de poder.

Que a ideia do suplício esteja sempre presente no coração do homem fraco e domine o sentimento que o arrasta para o crime.

Esses sinais-obstáculos devem constituir o novo arsenal das penas, como as marcas-vinditas organizavam os antigos suplícios. Mas, para funcionar, têm que obedecer a várias condições:

Ser tão pouco arbitrários quanto possível. É verdade que é a sociedade que define, em função de seus interesses próprios, o que deve ser considerado como crime: este, portanto, não é natural. Mas se queremos que a punição possa sem dificuldade apresentar-se ao espírito assim que se pensa no crime, é preciso que, de um ao outro, a ligação seja a mais imediata possível: de semelhança, de analogia, de proximidade. 

É preciso dar à pena toda a conformidade possível com a natureza de delito, a fim de que o medo de um castigo afaste o espírito do caminho por onde era levado na perspetiva de um crime vantajoso.

A punição ideal será transparente ao crime que sanciona; assim, para quem a contempla, ela será infalivelmente o sinal do crime que castiga; e para quem sonha com o crime, a simples ideia do delito despertará o sinal punitivo. Vantagem para a estabilidade da ligação, vantagem para o cálculo das proporções entre crime e castigo e para a leitura quantitativa dos interesses; pois tomando a forma de uma consequência natural, a punição não aparece como o efeito arbitrário de um poder humano:

Tirar ao castigo o delito é a melhor maneira de proporcionar a punição ao crime. Se é isso o triunfo da justiça, é também o triunfo da liberdade, pois então, não vindo mais as penas da vontade do legislador, mas da natureza das coisas, não se vê mais o homem fazer violência ao homem.

Na punição analógica, o poder que pune se esconde.

(…)

Tem que haver relações exatas entre a natureza do delito e a natureza da punição; aquele que foi feroz em seu crime sofrerá dores físicas; aquele que tiver sido preguiçoso será obrigado a um trabalho penoso; aquele que foi abjeto sofrerá uma pena de infâmia

Apesar de crueldades que lembram muito o Antigo Regime, é um mecanismo bem diverso que funciona nessas penas analógicas. Não se opõem mais o atroz ao atroz numa justa de poder; não é mais a simetria da vingança, é a transparência do sinal ao que ele significa; pretende-se, no teatro dos castigos, estabelecer uma relação imediatamente inteligível aos sentidos e que possa dar lugar a um cálculo simples. Uma espécie de estética razoável da pena.

Não é só nas belas-artes que se deve seguir fielmente a natureza; as instituições políticas, pelo menos as que têm um caráter de sabedoria e elementos de duração, se fundamentam na natureza.

Que o castigo decorra do crime; que a lei pareça ser uma necessidade das coisas, e que o poder aja mascarando-se sob a força suave da natureza.'



Fonte:


FOUCALT, M. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução Raquel Ramalhete. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. ISBN 85.326.0508-7.